sábado, 6 de outubro de 2012

Cuidado com o vão entre você e seus pais

Estamos no Água Crônica. Como em todo o lago, lagoa, rio e mar, as águas deste blog costumam a refletir. O que tenho agora é uma crônica para vocês refletirem. Boa leitura aquáticos terrestres!

 

"Cuidado com o vão entre você e seus pais"

 
 


 
Consolação era a próxima estação do metrô e o destino de mais um dia de trabalho. Minha filha tinha ficado na estação Tiradentes. Nem quis a minha presença até as catracas:



- Pai, pode ficar por aqui... Aqui está bom... Assim você volta uma estação e pega a linha amarela até a Paulista.

Eu compreendo, ela está na idade de ficar mais livre, mais solta, mais independente, assim como Tiradentes lutava por mais independência e liberdade. Consolei-me na Consolação, apesar de falar comigo mesmo: "Se ela queria mais independência por que não desceu no metro liberdade?". Mas antes da parada do trem na estação luz, li na parte de cima da porta de saída uma mensagem que iluminou minha cabeça. A frase alertava num tipo de letra especialmente utilizado para chamar a atenção dos passageiros: "Cuidado com o vão entre a plataforma e o trem!".

Automaticamente a porta se abriu, assim como matematicamente os pensamentos sobre meu pai foram se somando e não mentiam: "Existia um vão enorme entre nós". Ao pisar na plataforma, sentia um nó na garganta porque a segurança daquele concreto fez o meu abstrato lembrar de meu pai em seu leito de morte e assim como o trem que partia, meus pensamentos foram seguindo de estação em estação até a minha infância. Uma bela infância, meu pai exercendo a responsabilidade de chefe de família, pagando contas, me levando para a escola, para os passeios e hoje descubro que as raras vezes que tínhamos uma conversa mais séria, sempre vinha após uma reunião particular com a minha mãe. Mas aquela conversa de homem para homem poucas vezes aconteceu, se é que aconteceu. Sexo, profissão, velhice, enfim, está difícil recordar de uma conversa mais profunda com meu pai a respeito destes temas cheios de tabu. Um silêncio. E agora, minha filha com seus quatorze anos, está numa fase de distância de seus pais, ainda que no começo. A voz do funcionário do metro ecoava pela estação: "Ao descer do vagão, cuidado com o vão entre a plataforma e o trem".

Existia um abismo, uma depressão profunda no oceano que banhava meu pai e eu. Na minha mente essa onda de pensamentos veio como um tsunami, varrendo outras preocupações de como seria meu dia, o que vou comer no almoço e inclusive o que vou levar de bebida para a "hora-feliz" do fim de expediente?: Estricnina? Cicuta? Licor Fernet? A pinga do Nicanor?

Eu vi meu pai falecer no hospital e procurava descobrir o que havia naquele silêncio final, dos seus últimos dias. O que ele pensava sabendo que seu destino estava próximo? Se tivesse feito isto, se tivesse feito aquilo. Devia ter me casado com aquela, não devia ter me casado, bem que eu devia ter me separado e ficado com aquela outra. Um filho só já era o suficiente para uma boa qualidade de vida, mas aí veio o Mauzinho... Devia ter logo uma meia dúzia de filhos... Se eu seguisse a profissão de advogado talvez estaria numa melhor...

 

O que será de minha neta? Será que meu filho vai ter uma conversa franca com ela, diferente do que eu acabei não fazendo sem saber?... Por que meu filho insiste nessa mania de ser escritor ao invés de se dedicar á sua carreira no banco?...

O silêncio entre nós foi crescendo igual a um carro que parte da cidade rumo ao interior. O vão que quase não existia entre nós, estreito como aquele entre o trem e a plataforma do metro foi ficando cada vez maior. A partida deste carro foi na minha adolescência que coincidia com a meia idade do meu pai. Meia cerveja. Sim, me lembro de der tomado cerveja pela primeira vez num almoço de domingo, oferecida pelo meu pai, era uma garrafa pequena e gordinha, o gosto por sinal era bem amargo e hoje o gosto da cerveja perdeu o gosto, assim como as conversas que eu tinha com ele, cada vez mais difíceis de acontecer e sempre mais rápidas, menos intensas. Agora tenho certeza de que a quietude dele, sempre pensativo, eram reflexões sobre os estilos de caráter que deveria ter tomado e que poderiam ser debatidas entre nós. Imagino que bom seria se aquele vão entre a gente fosse preenchido com um chão protegido que nem precisasse da linha amarela de segurança, de vê-lo mais alegre e com mais sonhos realizados, uma vez que nos últimos anos ele vivia em função da minha filha e acredito que existia um leque bem maior de aspirações a serem realizadas.
Caminhei os três quarteirões da Av. Paulista que separavam o metro do meu trabalho, sempre com estes pensamentos e antes de entrar no prédio onde garanto o meu ganha-pão, não tinha vão nenhum, apenas uma escada de três degraus. Mas, um novo vão poderia estar começando entre mim e minha filha. Novamente a minha mente se lembrava da voz daquele funcionário do metrô : "Cuidado com o vão entre a plataforma e o trem".
 
E ao descer neste mundo, há quarenta e cinco anos atrás, no século passado, bem que algum anjo ou o Universo poderiam me alertar: "Cuidado com o vão entre você e seus pais"...

                                                                                                       Mauzinho 2012




Nenhum comentário:

Postar um comentário